Por: Fábio Henriques
Desde que surgiu, o processo de mixagem musical está em constante processo de evolução. Da captação mono à produção digital, como esse desenvolvimento impactou a dinâmica de músicos e engenheiros?
O que conhecemos hoje como “mixagem” é um reflexo direto da tecnologia, e surgiu como uma consequência natural ao desenvolvimento da gravação não-simultânea multipistas. No início dos tempos da gravação, tudo era mono, e toda a performance musical precisava ser captada de uma só vez – isso mesmo antes da invenção dos microfones.
Mixar era o ato de controlar o volume dos músicos para que o som final ficasse equilibrado na gravação. O que hoje entendemos como subir um fader, naquela época se conseguia aproximando o músico do gravador. Quem soava naturalmente alto ficava mais para trás, e coisas mais suaves (e mais importantes, como a voz), ficavam mais perto.
Mesmo com a chegada dos microfones, pelos idos de 1925, a prática se manteve basicamente a mesma, porque, no final das contas, todo mundo precisava tocar ao mesmo tempo e só havia uma pista para registrar a gravação.
No final da década de 1950 e início de 1960, começaram a aparecer os gravadores multipistas e o processo que viria revolucionar o meio do áudio: o sistema sel-rep, ou simul-sync. Essa técnica permitiu que se gravasse uma pista e depois se gravassem outras, ouvindo o que já havia sido gravado. Ficamos livres da obrigação de tocarmos todos ao mesmo tempo.
Vale lembrar que os desktops podem oferecer maior poder de processamento e customização, porém os laptops oferecem a portabilidade, essencial para um DJ, por exemplo, e para todos que um dia querem gravam no quarto de casa, mas no fim de semana pretendem gravar no sítio do avô ou numa reunião de sua igreja.
Com isso, surgiu outra necessidade: a criação de uma etapa posterior à gravação, na qual o que havia sido gravado em sessões diferentes pudesse soar como se fosse tocado ao mesmo tempo. Ou, pelo menos, soasse de forma a combinar as performances de maneira harmoniosa. Assim, nascia a mixagem moderna.
Os sistemas multipistas começaram a aumentar de tamanho. A partir da década de 1970, houve um crescimento na capacidade dos gravadores, que podiam gravar até 24 pistas. E mais: por meio de mecanismos de sincronização, era possível combinar dois gravadores, elevando o número de pistas para 48. Isso exigiu o desenvolvimento de técnicas para se efetuar mixagens mais eficientes. Um exemplo clássico é o dos sons de bateria.
Mesmo com a possibilidade de se gravar em mais de uma pista, no início, não havia muitas pistas disponíveis. Instrumentos com múltiplas fontes sonoras, como a bateria, acabavam tendo poucas pistas para ocupar. Então, se fazia uma captação com menos microfones, favorecendo a sonoridade do kit como um todo.
Quando passamos a ter mais canais à disposição, pôde-se gravar de forma individual cada peça da bateria. Mas, por causa dos fortes vazamentos, os microfones começaram a ser posicionados cada vez mais perto e, com isso, houve uma mudança radical na sonoridade do instrumento, favorecendo mais as peças individualmente – o que se nota claramente a partir da segunda metade dos anos 1970.
Em paralelo a isso tudo, a tecnologia dos consoles de gravação se desenvolveu rapidamente, aumentando o poder de processamento disponível ao engenheiro, que se via cada vez menos obrigado a processar durante a gravação, delegando essa tarefa à posterior etapa de mixagem. As coisas que antes precisavam ser definidas no ato de gravar, agora, podiam ser feitas – e, principalmente, modificadas – durante a mixagem.
A etapa de mixagem foi ganhando importância a ponto de se tornar tão ou mais definidora do resultado quanto o arranjo, a gravação e a performance.
Durante esse desenvolvimento, porém, uma coisa era constante. A informação estava rigidamente “presa” às fitas, onde eram armazenadas. Atos simples, como desligar um canal quando o músico não toca, que hoje é algo trivial, exigia a colaboração ativa dos músicos. Era comum delegar a cada músico da banda a tarefa de comandar um fader, já que tudo era “ao vivo”, mesmo durante a mixagem.
Foi quando surgiram as automações de consoles. Os computadores pessoais (que apareceram em meados dos anos 1980) passaram a permitir que funções como desligar ou ligar canais (“mute/unmute”) e até o movimento dos faders de volume (“moving faders”) fossem automatizadas. Os engenheiros começaram sofisticar cada vez mais o processo de mixagem e liberavam os músicos da responsabilidade.
Em alguns consoles mais caros, passou a ser possível até memorizar a posição de cada botão, permitindo algo inimaginável alguns anos antes: continuar em outro dia uma mixagem que não havia sido terminada. Antes disso, a mix tinha que acabar no mesmo dia em que começava, pois não havia como memorizar cada controle usado.
Até que, no início dos anos 1990, houve uma revolução no áudio profissional como um todo, comparável e até mais importante que o advento da gravação multipistas: a gravação em computador. Já se podia gravar em fitas digitais como opção às analógicas desde o início dos anos 1980, mas a informação continuava rigidamente atrelada à sua posição na fita.
Com a gravação em computador, essa rigidez desapareceu. A informação de áudio já não era mais linear/longitudinal. Passou a ser possível editar tempo, copiar trechos para um lado e para o outro e muito mais – isso tudo, sem nenhum prejuízo da qualidade sonora.
O mixador, além desse poder, passou a ter disponíveis processadores de software (equalizadores, compressores, reverbs etc) que, por um lado, diminuíam a necessidade de consoles sofisticados e, por outro, permitiam uma memorização total do que estava sendo feito.
Terminar uma mixagem em outro dia, ou mesmo fazê-la já contando com diversas etapas, se tornou uma constante.
Até que, no auge do desenvolvimento das DAW (os softwares para áudio nos computadores), em meados dos anos 1990, já era possível executar projetos inteiros dentro de computadores. A topologia dos estúdios mudou radicalmente e, com ela, as técnicas de mixagem.
Ao longo da história, eram frequentes as mixagens que consumiam um número enorme de horas consecutivas. Prosseguir uma mix em outro dia, como vimos, exigiria um esforço tão grande que era algo impensável antes das DAW. Então, tínhamos os incontáveis casos de mixagens que viravam noites, com horas e horas de trabalho que, dificilmente, seria possível repetir.
Meu recorde pessoal, nessa época, foi de 25 horas ininterruptas de mixagem, sem paradas.
A tecnologia digital proporcionou uma mudança radical e um conforto sem precedentes ao mixador. Até nos detalhes mínimos como, por exemplo, fazer uma cópia para o artista ouvir em casa. Até meados de 1990, o que existia era uma cópia em fita cassete, que tinha enormes problemas. Os CD-Rs apareceram e foram de extrema utilidade na avaliação off-line de mixagens, mas isso só a partir do momento em que os computadores entraram em cena.
Para nós, nessa época, o avanço extremamente importante foi poder ouvir em um CD player algo próximo de como um ouvinte ouviria no produto final (descontada a masterização, que é um assunto por si só).
A internet e o aumento de velocidade disponível vieram possibilitar mais uma quebra de paradigma para o processo. Nos últimos anos, viemos nos aproximando de uma mixagem verdadeiramente on-line. Hoje em dia, é bem comum que façamos uma mixagem, enviemos o resultado para alguém, artista, produtor, executivo de gravadora, ouvir e avaliar, e solicitar as alterações que desejar.
As alterações são facilmente executáveis, principalmente se o ambiente da mixagem for fortemente “in the box” (dentro do computador).
Uma nova mixagem é gerada e enviada, e o processo se repete até que o produto esteja finalizado. Particularmente, tenho feito assim há pelo menos dez anos. Isso é o que ficou conhecido como mixagem remota, ou mixagem a distância.
Os mais recentes avanços na tecnologia conseguiram nos levar a um passo além. Por meio de softwares dedicados, já é possível que uma pessoa em outro lugar ouça em tempo real o que se está ouvindo no estúdio, sem perda de qualidade. O mixador pode enviar o que ele está ouvindo diretamente ao cliente, permitindo que as modificações se processem em tempo real. Um dos exemplos é a ferramenta Audiomovers.
Agora, o ambiente de gravação e mixagem se liberta do estúdio único, ampliando o conceito de produção para além de apenas um local. Já é possível produzir (e não apenas mixar) em locais geograficamente separados – o que acabou se revelando uma necessidade nos tempos atuais.
Com esse conceito de produção distribuída, talvez a maior dificuldade seja as pessoas conseguirem se adaptar para obter as maiores vantagens. Frequentemente, a tecnologia avança mais rápido do que a nossa capacidade de recriar procedimentos consagrados, e no áudio isso parece ser mais presente que em outras áreas.
Se a gente compara como as coisas eram feitas no início – quando mixar era, simplesmente, rearranjar os músicos em frente a um microfone – com o momento atual e a possibilidade de cada profissional ter um papel colaborativo importante, mesmo com um distanciamento físico, nós podemos dizer que evoluímos enormemente ao longo do tempo.
Uma discussão interessante que deixo para que meditemos a respeito tem a ver com o processo artístico em si. No início, as limitações técnicas do processo de gravar e mixar impactavam diretamente no que se podia fazer versus o que se desejava fazer. Hoje, essa distância praticamente inexiste, dispensando até a proximidade física. Mas será que essa evolução permitiu efetivamente um progresso artístico? É, certamente, um caso a se pensar.